MATÉRIA
Quando os ativos também têm valor histórico, artístico e cultural
Se um edifício de escritórios, o prédio de um hospital e as instalações de uma fábrica já dão o que falar em termos de gestão, imagine quando o que se tem dentro vai além dos capitais financeiro e humano? Pois é. Estamos falando dos museus, cuja principal especificidade predial é a salvaguarda de acervos de valores históricos, artísticos e culturais. Por isso, é recomendável que o Facilities Manager, nesses endereços, seja um museólogo, como defende a Professora Doutora do curso de Museologia da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), Marla Prado:
FM Connection: Diferente de outras edificações, quais são as especificidades prediais de um museu?
Marla Prado: Sem dúvidas, a principal especificidade predial de um museu é a salvaguarda de acervos, o que envolve atividades de pesquisa e comunicação em exposições e ações diversas. Os públicos conhecem a identidade de um museu por suas exposições, mas para que elas aconteçam e comuniquem conteúdos atuais para públicos plurais, com diferentes concepções de mundo, existe uma estrutura nos bastidores. Nos aspectos operacionais, o edifício precisa de um projeto museográfico para a organização eficiente dos espaços, contemplando reserva técnica, salas expositivas, laboratórios, centros de pesquisa e documentação, área técnica administrativa, oficina de produção, enfim. Cada espaço deve ser estruturado para a finalidade que atende e o edifício, como um todo, deve articular esses espaços para que possam operar em sinergia, prevendo a mobilização e trânsito de acervos entre alguns desses ambientes, e o acesso dos públicos às exposições. Nos aspectos técnicos, podemos pensar a preparação dessas áreas, desde a climatização da reserva técnica e das salas expositivas, até o isolamento do edifício para o controle ambiental, mas também a equalização entre a preservação de acervos e o conforto dos públicos que visitam as mostras expositivas.
FM: Tais especificidades geram que demandas do ponto de vista administrativo? Que cuidados redobrados, ou mesmo diferenciados, devem ser tomados pelos gestores?
MP: Acredito que o principal cuidado que os gestores devem ter é garantir a integração entre os setores dos museus, com gente trabalhando junto como parte da instituição. Para isso é importante ter pessoal qualificado, mas também uma política transversal. Os profissionais de museus são públicos internos, e a experiência de cada profissional deve ser valorizada em sua particularidade. O trabalho em museus deve ser gerador para a formação profissional e pessoal dos seus colaboradores. Mesmo o auxiliar de serviços gerais é parte do que se produz no museu, e muitas vezes é este profissional que primeiramente irá notar uma ameaça à conservação predial ou dos acervos, que notará uma infestação de cupim ou uma umidade de parede, por exemplo. Entre curadorias e montagens de exposição, os acervos são movimentados, a estrutura das salas expositivas assume novas formas e as equipes são mobilizadas para novos fluxos de recepção dos públicos. Como a atividade de museus é muito dinâmica nos usos e movimentações dos espaços, sempre aparecem problemas de diferentes naturezas. Então, os gestores devem apoiar a integração e a participação de suas equipes nos processos. E, é claro, garantir e prever investimentos e recursos financeiros em um plano de gestão que contemple a preservação, pesquisa e difusão de acervos.
FM: Por falar em gestão, qual é a formação que se espera de um gestor de museus? É imprescindível que seja (também) museólogo?
MP: Bem, eu diria que ser museólogo é um grande diferencial. Na minha prática profissional, conheci muitos gestores de museus vindos de outras áreas. Com alguns deles troquei conhecimentos importantes e tenho certeza dessa reciprocidade. Os museus têm especificidades técnicas e legais que são reguladas a partir de reflexões conceituais e teóricas. O gestor vindo de outra área pode contribuir com expertises na captação de recursos, ou promoção de eventos, por exemplo, mas, na minha percepção, a sofisticação que a formação em Museologia proporciona é maior em termos de compreensão situada dos museus. O ICOM (International Council of Museums) é ligado à formação da UNESCO e, desde 1946, organiza e promove a reflexão propositiva das demandas do setor. Os museus participam de um desenvolvimento coletivo que não ocorre naturalmente, mas pela ciência, pela produção de conhecimentos na Museologia, que embasa toda a estrutura de regulação que busca a atualidade e revisão constante dos museus. A gestão de museus deve ser acompanhada por profissional museólogo. E isso é um aspecto legal, posto que a profissão é regulamentada. Contudo, a direção, ou gestão de museu, frequentemente recebe profissionais de diferentes setores. Considero que a função do gestor tenha natureza interdisciplinar e exija uma vasta e diversa formação. Mesmo um bacharel em Museologia nessa função precisa ampliar sua formação, tanto no que tange à área de gestão cultural, quanto na especificidade própria do museu a ser gerido (temos museus de arte, história, ciências, enfim). Estamos numa área ampla e multidisciplinar, mas é na Museologia que o desenvolvimento dos museus é pensado e discutido sistematicamente.
FM: Quando falamos do trabalho de Facilities Manager em prédios corporativos, consideramos a segurança patrimonial de um ativo que, em geral, não tem valor histórico. Como fica essa questão de segurança quando se trata de um museu e todo o seu acervo?
MP: Com certeza, existem grandes diferenças. A segurança em um museu articula a gestão dos acervos com a exposição para os públicos. Imagine o acervo como um ativo de valor artístico, histórico e cultural, mas que também tem valor pecuniário. Se por um lado, a exposição em museus lida com valor simbólico, entre interpretações e valorações culturais diversas, ou até conflitantes, por outro lado lida com a dimensão material dos bens, o que igualmente tem significados sociais. Então, a segurança em um museu orquestra essas disputas sociais com a exibição e a segurança dos bens. A segurança patrimonial não pode ser ostensiva, não pode ofender ou intimidar o visitante, e do mesmo modo não pode sacralizar o objeto. A segurança patrimonial não deve brigar com a finalidade sociocultural de um museu.
Já a gestão de segurança, ou gestão de riscos em museus, envolve um planejamento prático aplicado à rotina, considerando ameaças potenciais em determinados prazos, ou até sinistros, com estratégias de ação. E mesmo assim, ocorrem situações inusitadas, como o que aconteceu durante a pandemia de Covid-19, por exemplo, quando tivemos que fechar os museus e manter os funcionários em home office. Lembro que na época eu trabalhava no MIS, em São Paulo, e acabávamos de inaugurar uma exposição chamada “John Lennon em Nova York por Bob Gruen”. O próprio fotógrafo trouxe alguns dos seus originais na bagagem de mão, pois não confiava em enviar via transportadora. No vernissage, estávamos trocando cumprimentos com o cotovelo, confraternizando e imaginando o sucesso de público que teria a mostra. Mal sabíamos que, em poucos dias, viria a determinação de lockdown e nos encontraríamos todos com medo, fechando as portas do museu e recolhendo os originais de Bob Gruen à reserva técnica, juntamente com outras peças da exposição. As reproduções eram excelentes e a expografia e cenografia estavam incríveis, mas, com angústia, tivemos que cobrir tudo no próprio espaço expositivo. Depois disso, restou-nos planejar uma escala de visita dos funcionários ao edifício, salas expositivas e reserva técnica, e criar uma planilha para acompanhamento da ambientação climática e conservação dos espaços, já que nenhum edifício e qualquer acervo se preservam sem as equipes técnicas trabalhando presencialmente.
FM: E quanto a todos aqueles serviços de manutenção predial que conhecemos, mais aqueles que são próprios de um museu? Como orquestrá-los, sobretudo quando o prédio também é um patrimônio histórico?
MP: Bom, todos aqueles serviços de manutenção predial que conhecemos, nos museus, são monitorados intensamente. Normalmente temos um programa de edificações no museu, no qual avaliamos os riscos e potencialidades do edifício para desenvolver o planejamento estratégico. Quando se trata de um edifício histórico, as especificidades quanto à sua manutenção se dão, em parte, pelas diferenças estruturais e nas técnicas construtivas, em processos que são variáveis. Eu diria que em um edifício histórico, como um bem a ser preservado, a manutenção requer um acompanhamento maior e mais especializado.
FM: Um museu tem responsabilidades com o prédio em si, seus funcionários, visitantes e o próprio acervo (esteja ele exposto ou não). Como equacionar todos esses cuidados?
MP: A grande responsabilidade dos museus é com o desenvolvimento social através do legado cultural. Em se tratando de gestão, acredito que a chave para orquestrar todas essas coisas esteja nas estratégias de inclusão e participação dos públicos na tomada de decisão. Existem metodologias diversas de escuta às demandas sociais. Os museus de hoje não podem mais reproduzir um discurso hegemônico como verdade universal. Então, é preciso pensar em estratégias para torná-los múltiplos, diversos, inclusivos e plurais.
FM: Considerando o core business de um museu, acreditamos que uma formação/capacitação específica para TODOS que nele trabalham seja imprescindível, não?
MP: Acho imprescindível que os museus tenham profissionais especializados. Infelizmente, essa não é a realidade de muitos museus, mas esse cenário está mudando. Também considero que todos os museus devem ter profissionais museólogos nos cargos de responsabilidade, especialmente nos cargos ligados à gestão, pesquisa e preservação de acervos, em acordo com a Lei que regulamenta a profissão e com o Estatuto de Museus (Lei Federal nº 11.904, de 14 de janeiro de 2009, que institui o Estatuto de Museus; o Decreto nº 8.124, de 17 de Outubro de 2013, que regulamenta o Estatuto de Museus; e também, a Lei 11.904/2009 que é a Lei Federal que regulamenta a profissão de museólogo). Contudo, não necessariamente todos os profissionais dos museus devem ser museólogos, especialmente em museus de grande porte. Em um museu com 130 funcionários, por exemplo – como foi o MIS, em São Paulo, antes da pandemia de Covid-19, as equipes técnicas são formadas por educadores, designers, arquitetos, engenheiros, advogados e cada um está contribuindo com o museu a partir de sua área de atuação. No entanto, em museus pequenos, com poucos funcionários, o museólogo é aquele que não pode faltar.
FM: Por último, vamos falar de cases marcantes na sua trajetória, sejam eles tragicômicos ou mais sérios dentro de um museu.
MP: Falamos bastante de edifícios e isso me fez lembrar a situação do Paço das artes, em São Paulo. O Paço das Artes hoje é um museu dedicado à arte imaterial e eu mesma trabalhei na documentação de fundação dele como museu, incluindo plano museológico e política de acervos, mas não apenas isso. O Paço das Artes é um museu que nunca teve um edifício próprio, e isso expõe a instituição à fragilidade. Por muito tempo, o Paço das Artes funcionou na cidade universitária da USP, mas estava ligado à Secretaria da Cultura e ocupando um prédio que pertencia à Secretaria do Estado da Saúde, através de um contrato que findou em 2016. Na ocasião, o Paço das Artes foi desmontado e abrigado dentro de outro museu, o MIS-SP, até que, em 2020, pôde mudar para um novo prédio, o Casarão Nhonhô Magalhães, o que foi uma grande conquista devida ao empenho maior ainda da então Diretora Artística, Priscila Arantes. Contudo, ainda sem sede própria, pois o maravilhoso edifício foi adquirido pelo Shopping Pátio Higienópolis, e por ser um patrimônio histórico e artístico tombado, parte da contrapartida pela aquisição do edifício é a sessão de uma parcela do espaço para o uso público do patrimônio cultural. Então, novamente o Paço das Artes ocupa um edifício através de um contrato com duração de 20 anos. Então, acho que vale refletir sobre a fragilidade de nossas instituições museais e da preservação de nosso patrimônio cultural.